quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Cruz-credo

Pinga, ponta esquerda que brilhou na Portuguesa, Vasco e Seleção Brasileira na década de 50, nunca admitiu o fim da carreira. Tanto que, aos 69 anos, 25 anos depois de ter parado de jogar profissionalmente, ainda disputava peladas com amigos num campinho de terra nas proximidades da avenida Morumbi, no Brooklin. Ele adorava futebol. Mas tinha um pavor danado de “repartição pública”.

Essas duas palavras lhe davam urticária. Para o veterano jogador, tudo o que estivesse ligado ao governo era “repartição pública”. E nesses locais, afirmava ele, com a inocência de boleiro nascido no interior, tinha que se ir de gravata e acompanhado de advogado. Claro que não era assim, mas as informações de que ele dispunha sobre o mundo dos governos –federal, estadual e municipal – eram tão restritas que ele não avançava um milímetro além de seu simplório raciocínio.

O veterano jogador tivera algumas experiências ruins com a burocracia governamental, especialmente por causa de declarações de rendimentos incompletas. Ele queria distância “dessa gente”, mas nada tinha acontecido que tivesse lhe causado um trauma maior.

Até que um dia, numa véspera de feriado, sol a pino e temperatura nas nuvens, no intervalo da pelada com os amigos, ele foi abordado por um oficial de justiça: “O senhor está sendo convidado para ser testemunha de uma ação no Fórum Trabalhista”. O sempre falante e alegre jogador, ficou paralisado. O rapaz pediu que ele assinasse a primeira via, entregou-lhe uma cópia e “vazou”, como diz a nossa brava juventude hoje em dia.

Minutos depois, saído da perplexidade, o ponta esquerda desabafou curto e grosso: CRUZ-CREDO, num misto de trauma e medo, diante de situação inusitada e desconhecida. A gargalhada dos presentes foi geral. Mas deu para perceber que ninguém queria estar na pele dele. Estava todo mundo com medo da tal “repartição pública”.

Pois Pinga já se foi faz muito tempo e as coisas não mudaram. Quer dizer, mudaram, sim, mas para pior, isto porque a administração pública não se interessa pela comunicação e esta não se interessa pela administração pública. Sim, vamos deixar bem claro. Os governos estão lotados de assessorias. Mas elas defendem os mandantes de plantão. E não o Estado. Que é o que interessa ao cidadão comum. Tipo os Pingas da vida.

As crises nos governos – denúncias de corrupção, por exemplo – acabam em novelinha por maiores que sejam. Surgem de “furos” (quem conhece o mundo político sabe que geralmente é cachorro grande detonando cachorro grande. É bom lembrar também que dificilmente o repórter fareja a notícia e produz trabalho jornalístico puro. Na maioria das vezes, ele recebe o material de alguém e quase sempre em capítulos).

Feita essa ressalva, “os furos” produzem manchetes, depois caem para o pé de página e somem. Até vir outro escândalo. Mesmo assim, os governos quase não montam “comitê de crise” como fazem as empresas privadas. Primeiro porque não há hábito e segundo porque o tal “comitê” de nada adiantaria, já que, na maioria das vezes, as denúncias são políticas. E aí ganha quem tem mais força na mídia.

É bom que se diga também que toda a administração está ligada a um partido. E este tem a sua ideologia que, geralmente, busca ampliar o poder em todos os níveis –municipal, estadual e federal. E crescer. Feito isto, missão resolvida, bola pra frente e dane-se a crise. É quase sempre assim que se pensa lá no mundo político.
Do outro lado, na mídia, com raras exceções, busca-se a notícia, contra ou a favor do governo de plantão. E é aí que mora o perigo. Sem preparo em questões administrativas públicas (a maioria dos profissionais de imprensa tem essa falha), publica-se tudo o que é oferecido. Claro, sempre têm os mais espertos que pegam só o que lhes interessa, já que o que “vale é vender jornal” (ou a mídia em geral).

Por fim, o poder financeiro do Estado não pode ser desprezado. Afinal, milhões em publicidade são investidos todos os anos, de norte a sul do País, independentemente da ideologia do governo. E o veículo de comunicação que depende de verba pública, por mais isento que seja, sempre acaba dobrando a espinha. E cá pra nós – “grana é grana, venha de onde vier” , especialmente em cenário de crise. Essa frase era a marca registrada de um dos diretores da Associação de Jornais de Bairros, entidade sempre desprezada por políticos, menos nos períodos eleitorais.

Mas então a tal “repartição pública” não tem jeito de ser melhorada? Tem. Passa pela modernização dos sistemas políticos com partidos mais arejados e fortes, além de concursos públicos (também) para jornalistas que vão trabalhar na administração dos governos federal, estadual e municipal, pois ficariam mais imunes ao jogo político.

Aí, acho que até o “velho Pinga” perderia o medo de “repartição pública”.


Antenor Braido é jornalista e trabalhou no grupo Folha por quase 20 anos – onde, entre outras funções, foi coordenador da Agência Folha, coordenador de fechamento da Folha de S.Paulo e ombudsman da Folha da Tarde (atual Agora). Foi também secretário municipal de Comunicação de São Paulo.

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